Wednesday, January 13, 2010

"As cidades de Israel" de Manuel Pedra



Manuel Pedra, isto é, Manuel Ângelo Ochôa de Castro, nasceu em 30 de Novembro de 1944 em Alfândega da Fé. Recorrendo a um guache de Maria Helena Vieira da Silva em lugar de capa e a múltiplas referências poéticas, Manuel Pedra, ainda em primícias literárias, mostrava já nestas "cidades de Israel" um poder subversivo que o tempo só confirmou. Leia-se, por exemplo, o fabuloso incipit:

a mulher poema

Levei toda a manhã a sonhar
com a tua viagem.
Tu és pura e bela, tão bela és
tu, poema.

Este livro saiu em edição de autor e dele tiraram-se 700 exemplares que foram compostos e impressos nas oficinas da Atlântida Editora, S. A. R. L., Rua dos Combatentes da Grande Guerra, 67 - Coimbra.

13 comments:

www.angeloochoa.net said...

...Confirmo os dados supra. A edição de «as cidades de Israel» custou a ido papá funcionário público 45 contos de reis. O guache de Vieira da Silva foi-me facultado por um tal de Menezes, que o teve, de oferta da pintora, de ida sua a Paris. Devolvi-lho; embora me custasse o encontrar. Anos após, vejo-o, e pasmo, em serigrafia, em exposição junto à actual mega CGD. Em Lisboa. O livro é agora raridade. Ofereci a maior parte da edição. Mas não bati em costas camaradas nem dobrei cerviz para vê-lo impresso, pesasse-me isso embora, por custo, a praticamente geral indiferença, para não dizer pior palavrão.
Ângelo Ochôa, Ochoa, Manuel Pedra, Ochôa de Castro, Manuel Ângelo Ochôa de Castro...

www.angeloochoa.net said...

Em
http://angeloochoa.net/portal_files/page0003.html
e em
http://angeloochoa.net/portal_files/page0004.html
e em
http://angeloochoa.net/portal_files/page0010.html
e em
http://angeloochoa.net/portal_files/page0005.html
poderão fazer «download»
a custo zero dessa de
‘As Cidades de Israel’
e DAS TODAS as restantes 11 publicações,
que o mesmo autor, com a sua forçosa escrita, deu a luz do dia,
nos seus 51 anos de literatura,
até hoje…
…«Poesia Para Dar…»
(Escreveria o Paulo Quintela…)
…«Tudo Dás, Tudo Tens…»
(Disse o Jesus Cristo…)

www.angeloochoa.net said...

Um fim de tarde
na praia
uma mulher
falou-lhe,
o cântaro
descansado
na anca,
a exagerar a postura
tristemente.
Uma ideia
às vezes atormenta.

A última bandeira,
embebida em sangue mártir,
nas mãos sobreviventes
das crianças,
esvoaçando ao vento
a bramir após trovoada,
iluminada como Maria,
lá p’los Cimos.

Desmaiada lua,
não me escondas
o rosto até à cinza,
dá-me a sonhar
derradeiro abraço.

Árvores magríssimas,
arranhões, furor, crueza;
impossível cantar senão
após árdua jornada.

Que não esqueço
aqueles amigos desconhecidos:
Vieram cá a casa fazer um telefonema
a uma hora a que os cafés fechavam.
Que queriam pagar.
E entraram, e saíram; entraram, e saíram.
Mas arrecadem os trocadinhos.

Sei tanto sítio onde vermo-nos,
porque ante o mesmo portão,
as mesmas canções ausência,
os muros, onde crianças
vadias grafitam a palavra PIÃO
com as letras ao contrário: OÃIP,
brincadeiras da incomunicabilidade,
um trabalho que cansa antes de ser-se,
inúmeras barracas no horizonte abismado,
portadas, janelas, brancuras mar,
aborrecedores holofotes.

www.angeloochoa.net said...

Carlo e Dora:
Embrenhado em fumos o café.
Carlo rascunhava uns desenhos.
Afinal gostavam ambos de cinema, flores, iogurtes.
Estavam a despedir-se.
Ela levava para o quarto aquela tela azul.
-
A casa vazia, o quarto nu, o tijolo argamassado,
a janela afundando-se num céu desconhecido,
que desde um claro vão se divisava.
-
O dinheiro contado.
A mala pesada.
A muda de quarto.
Paredes que se apertam.
Um cão lá por fora.
Abjecção, náusea.
Hora de alçar.
Zunido insistente p’lo escuro dentro.
Quilómetros até romper manhã.
‘Eu Sou A Imaculada Conceição.’
Figura iluminada num portal.
-
Pode sair.
Cisnes desmaiando estagnadas eternidades;
laranjadas num sórdido quartel por Campolide;
monstros nas funduras marítimas da Tv.
-
Celeste tomara conta da sua vida
como se duma verdade total se tratasse.
Restavam-lhe os sonhos:
Em margens livres, esvoaçavam aves feridas;
deslizavam férreos comboios;
irrompiam das altas penedias cascatas a precipitar-se;
labirintos, cidades nunca vistas, destroçadas,
onde se perdia e encontrava,
cataclismos, desabamentos, conflagrações,
reuniões, políticas quezílias, susceptibilidades,
discussões familiares temperando doridos tédios,
escritos evocados, mentalmente torturados,
surtos ecos repentinos, precisões subtis,
ardilosas provações, piscinas, plenitude.
-
O entardecer p’las árvores,
suavidade, chinfrim, pardais,
interminável, angelical melodia.
Arrancado a um texto de Pratolini,
um sórdido bar, onde uma mulher
ainda jovem ingeria limonada.
-
A pastorinha veio às flores,
e encontrou elefantes, malmequeres,
papoilas, borboletas,
a pastorinha da cara preta.
-
Scherzo:
Dêem-me a água e o negro café após sono,
dêem-me música, que m’intervale goles bebidos, e baforadas,
que entrementes se me engolfam pulmões dentro.
Café, água, música, cigarros
e, claro está, a minha mesa do canto.
Por favor, com este calor, não se esqueçam de ligar a ventoinha.
Aqui respiro o meu ar, com o ar do meu cigarro,
raízes minhas, que também vivo no pó.
Oh, o egoísmo de ser-se como vento ou chuva,
e fruir-se pura e simplesmente.
Não me puxem pra trás a cadeira enquanto me sento.
Convenhamos em que tais brincadeiras,
dum péssimo mau gosto,
só cabem em certas fitas.
O resto está certo como a morte,
ou a como força da vida,
como a liberdade, o amor, ou a graça.
As contas ficam em dia
ao desembolsar as exactas moedinhas
com óbvio ‘obrigado’ p’lo serviço.

www.angeloochoa.net said...

O bom papa João
ante o interlocutor
bem ouvia,
intimamente
sopesando
que dissesse.
-
Pipilarem
negras
andorinhas
dum límpido
cristal
pelo ar
desmaios.
-
Joga-se ténis;
baterem-se bolas,
a ecos espaçados;
nenhum telefonema
nas imediações;
portas fechadas contra a rua;
provisões, com os vizinhos,
nos elevadores;
televisão desligada;
réstia campestre de paisagem;
máquina da escrita arrumada;
o inenarrável antigamente dum andar.
-
Talvez que certos gestos não contem,
mas que, palavras duma palavra, povo emergindo,
noutro astro, sem qualquer prazo, juntos, acampemos.
Necessário consumir o violento grito:
Atrocidades, tortura os poemas clamam.
Paulo VI ofereceu tabaco a Podgorni em reunião à mesma mesa.
Porque há o Vietname, electricidade,
guerra química, marés negras,
refugiados, desalojados, perseguidos, deslocados, napalm,
genocídio, carbono, bombas, estátuas, dias e noites sem sono,
pessoas detidas por ideias.
Navegar estes tempos com uma doença ansiosa
serve de entretenimento contra silêncios mastigados.
-
Ao jardinzinho
eu e tu íamos expeditos;
claramente desperto,
um sol expandia.
-
‘Se O omitirem,
as pedras e os menino O gritarão,
loucura para o mundo,
sabedoria para os simples,
única medida.’
Ser-vos-á servida quantidade acubulada, a transbordar:
Fará com que vos senteis à mesa, preparará refeição,
e vos atenderá, caso estejais vigilantes, dias, noites, cingidos
rins, vestidos com rigorosíssimo traje, e compunção.
‘O sol se deu resplendendo,
as boas e as más horas,
igual pra justos e injustos.’
Não criastes, artistas, filósofos, economistas,
estudiosos da praxis, sociólogos, um mundo ao avesso,
sufocados p’la vossa absoluta cultura,
com o Sim e o Não a equivalerem-se?
Que é daqueles que tratastes de somenos?
‘Um Brot, um Brot, um Brot.’ ‘De profundis clamavi.’
Donde esse vosso estranhamento perante a morte,
outro tempo, natural como respirar.
Pedi que a Hora não vos interrompa em meia viagem.
Alcance-se do Amigo Único A Antiga Palavra:
‘Venenos, espancamentos, pestes, serpentes não temereis.’
-
Trânsito, vidas esquecidas.
Trabalhava num lugar frequentado por argelinos e indianos.
O alojamento ficava perto da fábrica.
O sol batia a jorros.
A cidade, confusão, ruído, fumos,
néon, jardins, amenidade sossegada.
Travou amizade com Dubsveck,
um eslavo de infância amargurada.
Regressou depois, fazendo paragem em Marselha,
com o Vieux Port, a Marina, a ampla Cannebière,
a lua lindíssima sobre água.
Tabiques, esbatidos reflexos, o melhor tempo.
Serenidade, ondulações, suave orla.
-
Vertentes do pastoreio:
Nas margens do Sabor
a rosa ousa
do incessante
vaivém o rubor.

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De cerdeiros
a rama
a baloiçar.
-
Era anjo ou lua?
Terra ou céu?
Caminho ou rua?
Terra e céu,
a minha rua.
Vestia branco,
ou vestia lua?
Anjo branco?
Mulher nua?
-
A avenida
subvertida
por monocórdico
arrulho.
-
Porque lês
trémulos ais
intuis fulgurações.
-
‘O teu sorriso
leva-me sempre
para junto do mar.’
Ventre magnífico,
noite genetriz,
onde tudo acaba e principia,
onde ocorre o claro dia.
-
Algo avoluma distâncias, dá relevo à montanha.
Que haverá longe ou perto que destrua exílios?
Paredes em pedra, a cal da cor,
invólucros da solidão sonhada.
-
António, o poeta louco,
ditou-me os seus últimos versos:
O governador dos céus estava ali,
e um livro para ascender à pátria verdadeira.
Árvores dançando p’lo ar.
Pescadores chegam em romagem
pra beijar a mão à Senhora das Naves,
que embala ao colo o doce Filho.
Pássaros nidificam onde abre a flor
frágil à donzela.
Haja no pequeno reino paz.
Quando eclodir a Boa Esperança.
-
As várias palavras
por estantes debatendo-se,
medicamentos certos
da sonolência química.
-
Frescas, simples,
tais quais coisas,
aí mesmo à mente,
a estudar sempre,
a desvelar de outras
inesperadas palavras.
-
Fui padrinho do Zeferino,
e minha irmã madrinha.
Com nossos verdes anos
sentíamo-nos investidos.
Hoje meu afilhado
é engenheiro da Câmara.
Minha irmã partiu sem jeito,
dum tumor no cérebro.
Por mim aguardo o que vier
para que conste poeta.
-
Pertinho de Coimbra um missionário do Leste
deu-me uma boleia e na despedida
um ícone muito especial, que guardei.
Tinha uma oração para o coração.
Dizendo-a adormecia e acordava,
numa repetição contínua.
-
Conviemos em que o falar descambava;
concordámos em passar p’las brasas;
quanto ao que tivéssemos
a acrescentar
não importava.
-
A rede balança
na seiva,
na árvore,
no vento,
na dança,
na erva,
na aragem,
o corpo sovado.

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‘Os pobres trabalham cedo,’
algum poeta escreveu.
Se manhã, já dia, é belo,
no trabalho não entendem.
O trabalho, os braços, os braços, o futuro.
Esperança, alegria, alegria, esperança.
O pão dos pobres é duro.
Duro pão o que trabalham.
Tanta lágrima lavrando.
Quando é que o sol se reparte
neste profundo alçapão?
Os pobres trabalham cedo.
Terão sol por aqui, pelo ermo cego.
-
‘Aujourd’hui je suis loin, mais je reviendrai un jour.’
Raparigas dançando num terreiro, noivos a um comboio
programado.
-
Mesma quietude a dos pulmões -
do fim para o princípio rescrever até chegar a além - não mais senão
a esperança num sorriso breve -
um dia outro, gemer o violão, aldeias demasiadas para um só cantar -
pássaros e nuvens nos olhos fontes -
alheamento mórbido - um corpo prà rua atirado -
um sono dormido inteiro em tuas mãos -
terra irrompendo em carne brônzea -
desdobrando-se p’los levantes -
lado outro sem margens - leves tangendo sinos - chilrear dúbio -
a manhã - o alegre vaguear - inerte vacuidade - aragem ilimitada -
aves - voos - um seguir versos - repouso a cansaços vãos -
a solidão - porque não morres - mundos soando pra lá o encantamento -
e o furor - noite gelo tranquila a medo - mar expandindo -
linguagens dos arbustos vergando-se -
ruas percorridas a cismar - só a mesma mesa no café -
acaso sem história duns bons dias - a neve se suspende -
as árvores a florir - enquanto paredes descansam
algo que se interrompe - ou uma indetível vontade indefinida -
múltiplos enredos - e restar - aquém - o só intermédio -
gélidas ’strelas dormidas ou agras urtigas -
topar - num súbito - como as pessoas se escapam.
-
Usina d’azedo silvo,
um borrão negro sobre a boca.
-
Louco amor,
teus olhos,
buracos deslumbrados,
irrompem dum bocado de mudez.
Não precisamos de olhar
pra cima ou pra baixo,
mas em frente.
Delineamos sinistro rotineiro filme diário,
figuras apagadas,
que inúmeras,
uma câmara sobre a cabeça,
outra sobre o coração.
-
Ossos estalados
dos dedos,
super-esquisitos
devaneios,
sono inteiro,
nas tuas mãos vazias.

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Dedilhados
sobre larguíssimo teclado;
pára a tarde;
é a felicidade,
ou uma vontade de chorar?
-
Deitados na palha, na eira,
ao bafo quente daquele Verão,
olhos ao céu estrelado,
rumávamos a amotinados lumes.
-
Fazemos uma grande concha,
dedos entrecruzados.
Os pescadores, por perto,
perguntam-nos coisas.
Cobrem-nos com redes a tristeza.
Trazem-nos dos seus raros caranguejos.
-
Onde és,
além do teu lugar,
nem pensando,
como abalada.
-
As rosas
brancas
beijam-nos
inesperadas.
-
Tanto enlevo
termina nos teus dedos.
Somente teu olhar irradia dia.
-
Chuva no alcatrão,
alma latejante.
Descobri contigo
a excepcional
prossecução.
-
A moça me espera,
vou levá-la a passear,
palavras não contam,
conta é viver,
não se me atrase o poema.
-
Sucederem-se
abruptas
supitâneas
esquinas.
-
Querer bem a torpes aranhões,
num oficioso vagabundar -
roubassem-nos a casa -
ficava o luar -
chato o piolho e o cogitar.
-
Manhã serena,
Stockhausen mandado pra debaixo da cama;
o céu, igual a uma mulher amodorrada,
cadela com o cio.
-
Tenho para ti que o cinamomo -
tronco, tusa, árvore de dificílima declinação -
te somes estelar -
talvez sim - ou talvez sim -
tenho para ti que os concertados gestos…
-
Bilhar às 3 tabelas:
Moça pintora,
como está mais a sua má consciência socialista comunista?
Bizarramente acordada?
Desenterrada da cama?
Tome nota de que a segunda-feira laboral poderá começar bem.
Apresente os meus cumprimentos ao inspector Falcão.
-
Damo-nos conta que somos aquém escrito, visto que
os maços do tabaco não nos dizem imprimidos os poemas.
Embarcações, monte, Viena, Praga,
Budapeste, pó, neblina.
Confusão ocorre ao explicar
como morro enfermo nos teus braços.
-
Percorres ruas,
tristes alegrias resignadas,
com os jornais diariamente.
-
Jarra à roxa luz,
recolhimento,
na branda mesa
enredada renda.
-
Não vou dizer-te
quanto te amo;
sabe-lo bem,
doutro dia, noutra estrada,
a outra hora.
Gente seguia sorrindo,
cambiando multiplicadas palavras;
nós nada dizíamos;
íamos, vagueando alegria,
atrás do pó.
-
A esperança de ver-te, se der por isso.
Étaix, sábado, noite, circo,
rumor duns pombos,
sentamo-nos saltimbancos
na tromba do elefante anedótico.
Sós as árvores não constam.
Pedis-me um abraço, não sei, isto é cansaço.
Tu a atravessares apressada com um sorriso perseguido.

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Convulsão, Cerejais, 4.i.1970:
Forte e subterrânea convulsão, repentino estrondo surdo:
De sua força íntima, brusca uma árvore se eleva do chão.
O anjo, com a espada, desce a últimos confins da Terra,
transportando na hora, à geral devastação, a ira e o furor justo de Iahweh.
Seu escuro, fundo olhar fixa o então dormente mortal,
que num estremecimento do susto se fere da estranha, benévola mágoa.
O Filho do Homem, esplêndida nudez trespassada,
abraça, num vaso transbordante, muitos meninos abortados,
derramando leite, mel, um doce pão a saciar-lhes as mortes.
O pão é dor do homem vivo, sanguíneo vinho dum flanco,
tortura que vitima o pacífico anho.
Logo desperta, enxugando lágrimas, o peregrino
do oriente, regressado aos seus.
O Livro a donzela relê num milésimo fragmento de segundo;
altíssima, olhos decaindo sobre o tecido texto, assiste as insuspeitas
oscilações à alma, na feliz ultrapassagem da eternidade.
-
De hoje em diante, José,
a ternura, o esforço,
o Abril nítido repetido;
até quando, secreto sonho,
acordar o enigma a nos matar.
-
Alegria profunda,
eis a verdade,
um menino inclinado
prà parede.
-
Som ante a mesa, lisa frieza,
manhã jornal, povo espaço,
percorrendo-se.
-
O amante dos tapetes
convive com as noites.
O apaixonado das águas
ressona profundamente.
-
Adormecida
a longa tarde,
na chinfrineira
do bar me afundo.
-
Largo de Jesus
à chuva dum Verão,
distanciando-se a
pequena mão
da menininha,
num aceno ao pai,
que resolve
pasmos estremecidos.
-
Pena é
que a agenda aponte as emergências,
o contínuo divertimento, mas não a determinação.
-
La Chanson des Vieux Amants,
enquanto explode um sol pelo afogueado Ribatejo da CP,
antes alheia, te dás, e acompanhas-me,
prece ensonada, coração dolente:
Vivemos, lentamente, o que em disfarce nos foge,
tanto quanto a ânsia alcança:
A aventura, a viagem.
Quando os bravos pinheiros deixam antever o azul,
e a melodia morre-se, e os gestos se desvanecem.
-
Poesia
insinuas,
se horror
te domina?
-
Uma, duas flores lilás,
num retrato da infância,
na carteira de trazer;
a lâmpada incidindo
na cara entalada,
a sombra rodando
sobre a mesa;
o segmento talhado rigorosamente,
o aparo, à amarga indiferença;
a nuca é um ponto muito vivo,
disse, e voltou-se, o amigo;
os braços doem,
o psiquiatra é um senhor
envergonhado.
-
‘He was a friend of mine.
He never knew my name.’
Ir a outros dias,
sinos tangendo,
chilrar dúbio
na madrugada,
seguir a teimar paz.
-
Deparando-se com
erros sintácticos,
sem se importar com a testa,
sem literatura,
o último poeta evidentemente escreve:
Meu país, morto sol, pão exangue,
poema exílio, dolorida mágoa,
fúria térrea, doido amor,
neve ardendo em mãos estafadas.
-
À sombra de árvore
alguém descansa,
bambinos sumindo-se
pra denro da folhagem.
-
Dentro,
ouço e
sento-me;
retoma-se
a movimentos
espaçados
a mesma
imensa mesa.

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Dá trabalho ter a casa em dia.
Até correr cada compartimento,
e achar cada coisa em seu lugar.
Há sempre um papel a jogar fora.
Tua casa esteja em ordem.
Arruma-a, cada vez que precise.
Guardes lá um recanto onde medites.
Livros, palavras, sons
para as horas mais longas.
Que o mundo se restabeleça,
ao contacto fresco das paredes da paz.
-
Entretecido nas pequenas rotinas,
tais como barba, banho, café,
retomo o fio à quotidiana sequência.
-
Trouxeste sabor a mel a meus momentos desolados.
Devolveste-me ternura ao olhar magoado. Obrigado.
Se algo te dei, em breve cambiar palavras, ou num jeito de atrapalhação,
guarda-o para ti, como eu guardo a graça que me deste, e nem sei dizer.
Os passeios, que dávamos, antes da doença a consumir-nos exaustos.
Ao repetir teu nome sei, trazido de volta,
o tempo das gloriosas primaveras.
Foi bom rever-te, agora que regressaste à cidade plana,
repleta com o teu eloquente azul olhar.
Por onde se entornou o vinho dos sonhos?
-
Por abraçar-te última em meus braços:
Estavas desde início comigo, não te esqueci, enviada,
força estabelecida sob ângulo da nossa casa com uvas.
Assim fomos nascendo do grande nada,
lágrimas, sorrisos, perdas redimidas,
na alegria feroz das horas, companheira.
-
A maior alegria de Isiéli,
a trapezista triste, está em saltar impossíveis,
pra lá da cobertura, dum arame ténue, até pairar,
alta, por entre cintilantes estrelas.
A maior alegria de Isiéli, a trapezista triste,
está em ir, sequer em sonho, até pra lá da lona,
entre fios e luzes, pra voltar ao chão,
e andar somente, ligeira como se voasse.
Isiéli caminha por seus afazeres como em puro voo no trapézio,
em busca da paisagem única,
que lhe apresente o limite do amplo estrelejado céu.
É-lhe necessário ponderar fraquezas e forças em pleno salto.
-
Lembrar-te ainda na varanda,
atravessando-nos a hora a despedida,
me faz romper a mudez entre montes perdido:
Pra falar do memorial no coração
gravado a golpes fulgentes a espada:
Abundante pão até todos os meninos,
o fragor dum tronco, fúria irrompendo.
-
Mulher Mãe todos redime
para os braços em sangue do Filho,
a erguer-nos dum chão de baionetas.
-
Aí acima estás,
erguido à cruz, em Teu lugar de dor.
Dura dor Tua dor,
que é dor, e morte vida,
por estares aí assim,
morto e trespassado.
Mas arrebatasTe-nos até a Teu tão alto aterro.
Em dúvida a Ti venho, faminto desolado
na busca da Esperança que ficou
desde a Tua vitória sobre o Fim.
DesTe ao bom ladrão lugar cimeiro,
à direita imensa dO Pai.
Vá conTigo também meu coração.
-
‘A verdade far-vos-á livres.’
Libertará aqueles cujos nomes constam do Livro da Vida,
porque passaram a grave tribulação: Suas túnicas, branqueadas
no Sangue do Cordeiro, torturados, gaseados, cremados,
cinzas dispersas, da ignomínia reviverão.
Crês isto, contra senãos e desesperanças?
‘Adeus, Príncipe, pela primeira vez encontrei um homem.’
-
‘A ti, sentinela, constituo vigilante da Israel Família.’
Não te escuses repetindo: Acaso respondo p’lo irmão?
Se não o alertares, e ele cair, com ele cairás.
Se não fizeres soar a trombeta, haverá ruína na casa:
A ti pedirão contas. Se não proclamares o aviso em tempo,
às profundas pagarás pelos teus porque não vigiaste.
Se fizeres soar o som, o Seixinho Branco, que firmas no punho,
te encherá, com redobrada alegria, transbordando paz.
Que a Rocha te não destrua; aponta-A.
Ela te será o bem mais precioso,
o tesouro escondido, por que tudo deixaste.
‘Senhor, eu não sou digno de que partas pão comigo,
descansado sob este tecto,
mas a uma só palavra Tua,
ou a um aceno Teu eu serei outro.’

www.angeloochoa.net said...

Será que os anjos pisam a terra do pão fluindo ao vento?
Se pisam, é assim como se voassem, com sua espécie de ar.
Constam de quê? Sopro? Imo trémulo? Só leveza?
Velando solícitos subtilezas íntimas indiciam.
-
Guia-te o sonho o desassombro,
aladas presenças sobre pálpebras;
com salivado pão te reconheces.
-
Folhas tremulantes, em círculos de vento.
Esperas ainda?
Faz-se café.
Crianças gritam duns fundos.
Árvores renovam-se nos passeios a quem passa.
Freme folhagem, sobre a borda,
junto à ponte.
Uma circulação intensa sobre pneus.
Flores coloram as bermas dos carreiros.
Passam uns trabalhadores, com suas camisas garridas.
Umas moças, com as batas, umas enfermeiras, ou colegiais.
Algazarra, cores, ruído.
Tempo do novo amanhecer.
Não sentes o vagaroso apelo?
Desafogueia-te, anda.
Há jornais, livros, pão, palavras.
Lança-te à rua.
Não guardes nada nos bolsos.
-
Já as cegonhas paravam por seus ninhos,
sobre olmos.
Enquanto as águias planavam, a plena altura.
Findava a Primavera.
Concluídas aulas,
comboios regurgitavam
com quantos regressavam a férias.
Motociclos dobravam esquinas.
Felicidade sondava dentre choupos.
Galhos de nespereiras agitavam-se com aragem.
Muito ainda a que lançar mão.
Acordarias?
Deixarias, sombra, as paredes fechadas do teu quarto?
Darias as voltas necessárias?
-
Amontoam-se livros, caixas, isqueiros.
Para a gaveta ficar arrumada há que fechá-la.
Calcetam-se pavimentos, plantam-se árvores de flores
resplandecentes p’lo deserto cimento.
Ouve-se um ruído:
Alguém a riscar ferro.
Cafés às moscas.
Autocarros regularmente certos.
Estores caídos, largas janelas.
Computadores desligados, camas vazias.
Alunos em salas fechadas.
Motos, ruídos, cães, e automóveis.
Agressão?
Estranheza?
Apaziguamento?
Se saísse tombava apavorado.
-
Do crepitante lume:
Voltas que dê aqui regresso.
E afãs se esvaem.
-
Desequilibra-se e cai
o regente de orquestra.
-
De bem longe vem,
e está à porta, o homem,
cabelos brancos,
rugas cavadas, testa alta.
Traz paz o homem.
Deixem-no a caminho
até para lá da porta.
-
Escurecendo a cidade exaustamente,
as ruas das casas arrefecem olhos;
e afirmam-se nuas as pedras.
-
Mordi um dos teus cabelos.
Vento agora?
Sim, porque a noite,
sim, porque a manhã.
Éramos os dois
jovens quaisquer,
e os carris precisamente.
-
O mar
nos ouvidos,
durmo;
se
entretanto
acordo.
-
Brando ser,
poema
pleno,
flor
leve,
breve,
à tona
de ar,
para lá
de monte
e mar.
-
Montes
dormentes,
giestas
vergando-se;
uma fonte
na neve;
imensa urze;
verdes
castanheiros,
ouriços
carregados.

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Sereno,
no plano fundo
do lago, o sono brando
do Outono, o abandono.
-
Perdeu o nome a existência, disco rolando incansável.
Na aguarela do Mendão a praia em ébria insolação.
-
Alegria de Amar:
Os noivos na madrugada
deitaram fora os poemas:
Tinham resolvido o amor,
as janelas rasgadas:
Resolveram,
decididamente resolveram.
Os olhos ventoinhas denunciam terra.
Não faz bem às pessoas certas ver nudez.
Morderiam as bocas todos os dias.
Encontraram-se a primeira vez sós num espaço.
-
A aldeia em pensamento;
a que distância
as casas mais próximas da sua;
a angustiada voz
desperta;
a rapariguinha,
o prado adiante;
pedrinhas da calçada
a desinquietarem infância.
-
Vou a um outro dia,
com pernas para a frescura.
De deambular por fora,
longe do meu canto,
esqueci, há muito,
a humilhação poética.
Diluí-me em abraço,
no povo, mais do que na letra.
Evado-me de idear
quanto me nega.
Vou esquecer-me
de emendar a fantasia;
seguir ao rés da terra
p’lo tisnado dia.
-
Desenrolando vou
a acção obscura:
O amanhã trará
outra cor.
-
Cidade, teu cais, luzes, ruas, jardins,
largos onde descansam olhos,
claridade nítida para pequenos nadas,
tais como fumo, água, café,
que intervalam caminhadas,
pesos, lutas e surpresas.
Para lutar há não só praças,
escolas, recintos, fábricas,
casas cheias com memória,
mas uma vontade grande de ver teu corpo limpo,
crianças pisando-te despreocupadas,
operários erguendo não já o que lhes pese.
-
Plantas dos pés assentes
sobre este pedaço de terra,
paisagem
do anseio pacífico
doutra esfera,
os olhos desenham-me
a variegada imagem
sem guerra
que num O se encerra.
Chão, carpete ou azulejo?
Chão dos dias vedados
a trajectos ínvios de desejo.
Estou inteiro e nu, suspenso da escrita possível,
voo que a morte erguerá pra lá de mim.
Aqui medito a condição humana e a estatura:
Terra dura.
Um som através esboça a ouvidos o cenário em papel:
Desperto sonhar a música a me revelar.
Deixo-vos recado:
Nação estrangeira,
pacífico bocado aqui vivi.
Vou a outra margem.
Não são horas de variáveis devaneios.
Só uivos na noite que nos cobre.
Memória sobre.
-
Alados,
nas antemanhãs,
lembram a paz,
a calamidade,
a dor
ou a redenção?
Lêem o livro
interminável.
Umas mil vezes lêem,
e relêem,
para lá,
o escrito.
Porque lhes apraz estão de pé.
Cada criança ferem com essa força
que nasce coração.

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Seguindo o casario,
qual lençol,
o rio deslizando.
The white Chagall:
MA JOIE.
-
Gotas de água
por escorridos vidros;
a rubro raiado poente.
-
Semblantes sumidos
sob chapéus-de-chuva.
-
Repetidamente
a paragem do eléctrico,
imagem mesma
repassada,
sonho nada.
-
Madame Maar,
olhos tortos
esgotando-se;
sons prolongando-se;
um rosto maior
do que um livro;
uma torneira ininterrupta.
-
P’lo tempo revolvido no olvido,
contarei as loucuras possíveis,
os enredos, p’los teus dedos, sim,
p’los teus dedos lã.
Ficaremos os dois, os sons, os ossos,
em arco abrindo-se-nos os braços.
-
Ah,
teu devastado olhar
fixa o demorado mar,
revolto o vento.
-
Os jogos infinitos,
borboletas adejando
vãs tonturas.
-
Teia de aranha
na parede esburacada,
um canto, desperdícios,
uma aldeia em Trás-os-Montes.
As bicicletas não andam.
A humildade é um verme familiar.
Com cerveja e fadiga ideamos vadiar.
-
Sombra intocada
num papel
sem nada,
bermas à luz falsa,
as costelas partidas,
publicação a se7e cores.
-
Nem o abandono inútil,
os pés adormecidos ao peso,
a desolação imensamente plana,
a apatia sem nenhuma saída,
o travesseiro dos bons dias
muito obrigados,
os dedos na queda,
os tectos para o pavor;
as crianças não têm culpa
d’entrementes cabecearem tontos sonos.
-
A periferia dos tubos,
e um peixe.
Os círculos fechados,
o ateado cristal.
-
Para a mulher povo, que não é notícia,
queria uma canção com as mãos dadas.
Quem me cerrou numa esfera de azedeza?
Deixassem-me ignorante, saberia uma canção,
sem nome uma canção, braços, ancinhos,
arados em riste.
-
Acontece-me ficar sentado a tarde toda,
a refazer os gestos gastos.
-
Páscoa
a morrer flores,
ecoando vãos por grandes casas.
-
Mulher,
levei toda a manhã
a sonhar tua viagem.
Tu és o meu poema.